terça-feira, 26 de abril de 2011

távola redonda


O tempo não te fez uma surpresa. O tempo não te fez favor algum. O tempo urge e você estático contempla os instantes como se eles fossem alguma espécie de sereno. Instantes molhados que te encharcam. Pingos que te imobilizam. Instantes pregos pontiagudos arranham tua pele e abrem teu coração pra fora. Tudo de repente é jorro. É vermelho. É terra suja. Você está perto do meio fio considerando alguma coisa que nem você sabe o que é. A nuvem que passa é movimento do planeta e isso naturalmente não te faz andar. O ponteiro do seu relógio tenta captar os instantes. O relógio é uma tentativa absurda de organizar esse esgarçamento todo. Esgarçamento das estações e da pele. Da sua pele. Você não viu nada. Não ouviu nada e nem soube por onde ela andou. Seu estômago está faminto e seus olhos esbugalhados. O cachorro ao teu lado rói um osso que quase já é pó. Os instantes continuam serenando e você passivo puxa a calça para cima enquanto diz que  luta e nem sabe pelo quê. Você é um arcano maior do tarot que não tem número. Você ainda tenta ao menos viver a sua maneira. Seu melhor amigo hoje casou e não quis você lá.  A mulher que você um dia "gostou" porque nunca dirá que amou, não admira mais a sua forma de contemplar a ausência.Você continua a espera como se amanhã fosse sempre uma promessa de Sol, só por ser obviamente outro dia que não hoje. O mundo não te movimenta e você o culpa por ser rápido demais. Seu dia já não tem 24 horas. A passagem das folhas do calendário do açougue que você frequenta não é prova alguma de avanço e nem de que você gosta de carne. O seu sapato está com a sola rasgada. O rádio do carro parado ao seu lado toca Caruso. As contas da sua casa nem chegaram altas porque até hoje não é você quem as paga. Você agora tem um desejo. Apenas um. Um licor aromático da terra cinzenta que seu pai morou. Ah você também tem direito a uma pergunta. Uma única pergunta. Já sabe qual? Seu amigo ponteiro irá marcar exatos 3 minutos para uma decisão. Isso foi uma oferta do tempo. Uma oferta estilo Casas Bahia que te dá a chance de enquanto tudo é vermelho, é ferida, é rasgo você ter uma ação, um verbo com alguma conjugação que mude o rumo de tudo. Você está ali parado mas a coisa em si parece estar acontecendo. Mas não está. O formigamento dos gomos cerebrais acelera atrás de um questionamento maior. Não. Mentira. Você já não questiona mais. Onde mora a sua outra parte. Que não nesse chao árido, vermelho escarlate. Você está ensaguentado e não vê. Você bebe uma cerveja e convence muito bem os outros a tomá-la, acreditando que poder de convencimento  é carisma. Onde mora o amor. Você é um moço comprido. De cabelos castanhos avermelhados, olhos amêndoados e a barba sempre feita. Ou sua barba é grisalha nos seus vinte e muitos anos mas ninguém percebe isso muito bem? Seus olhos, sim, são grisalhos.Você tem ainda um minuto e meio para uma pergunta. O sereno está mais frio. Seu estômago contrai. Você sabe o que é úlcera? Não, esta não pode ser uma pergunta. O que te move? O que você espera por debaixo da chuva fina e do ponteiro que anda atrás dos números na tipografia times new roman. Amor só se for faminto,
mesmo saciado 
têm estomago vazio e pede o mesmo prato. Essa era sua frase preferida.  Você já se deu conta da sua morte de hoje? você sabia que todo dia você deveria se despedir de algo que não te serve mais? Seu estômago contrai e você nem sente mais. Cadê a sua pergunta. Onde está o seu desejo. Toca caruso mais alto. E mais alto.Una furtiva lagrima. Uma buzina dispara e o alarme do prédio vizinho também.Sua cabeça dói. O tempo não te ajuda. Socorro. Você gritou socorro? Não, desculpa foi um engano. Você está olhando para frente. Você segura a calça rasgada e vê seu coração bombeando sangue no pouco de terra que tem abaixo dos teus pés. Ainda há terra e ainda há você. Ainda há você. Ainda há carne na geladeira. Talvez ainda tenha verbo. Cadê a sua pergunta? Talvez tudo isso aqui em pontos e frases curtas seja uma única pergunta. Talvez  esse tempo esgarçado enquanto te olham seja uma pergunta. Seu coração quase desenha a linha do horizonte, é uma planície que bate? Ainda bate? Não há mais elevações, seu coração não é um terreno acidentado. E afinal é vida aquilo que existe sem acidentes? Há existência sem arranhões? Onde há existência quando não há verbo?
A ausência de perguntas é a morte - disse o trocador do ônibus  que acabou de passar perto do meio fio onde há pouco você considerava alguma coisa. Alguma coisa que nem mesmo você sabe o que é. 


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